
Padre Cícero teria um reumatismo? Espondilite? Crohn? – Curiosamente, um autor muito crítico do padre Cícero descreve-o em 1926 como “anquilosado e sofrendo frequentes cólicas intestinais que o obrigam a rigoroso regime alimentar”.
Francisco Airton Castro Rocha
Padre Cícero teria um reumatismo? Espondilite? Crohn?
Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará (UFC)
O padre Cícero Romão Batista viveu 90 anos, nasceu em 1844 e faleceu a 20 de julho de 1934. Vida tão longeva ainda é incomum nos dias de hoje. Assim, para além de outros dotes pessoais do Patrono das Florestas, título que lhe foi conferido pela organização não-governamental Greenpeace (http://blogdocrato.blogspot.com.br), foi ele muito bem aquinhoado pela Divina Providência. Apesar da vasta bibliografia sobre aspectos políticos e religiosos ligados ao padre Cícero, não há muitos detalhes da saúde do Patriarca do Juazeiro. Não há descendentes do padre Cícero, pois suas irmãs não tiveram filhos. Sobre sua mãe, Dona Quinô, sabe-se que ficou “paralítica” e teria apresentado por muitos anos “inflamação nas pálpebras”.
Na obra de Amália de Oliveira, que conviveu vários anos com ele, está relatado que o padre Cícero apresentava a cabeça inclinada, na realidade fixa para o lado direito, já por volta de 50 anos. Pelo menos aos 41 anos já usava um cajado que, embora pudesse representar um símbolo pastoral, pode bem ter-se prestado de suporte à deambulação. Em 1888, com 44 anos, uma foto do padre Cícero com uma de suas irmãs revela desvio lateral de sua cabeça, que persiste em fotos posteriores (figs. 1 e 2). Na sua mais recente biografia, há o relato de “escoliose dolorosa”, tortuosidade do pescoço e dores lombares que teria sofrido ao longo da vida. Em outro livro, reitera-se seu problema postural e o andar reclinado, que é atribuído a uma escoliose contraída cedo, bem como uma cifose que lhe deu “aparência grotesca”. Esse último relato seria de seu aspecto em 1926, portanto com 82 anos. Por volta dessa época, também há outro livro, de autor que visitou o padre Cícero, com relato sobre sua gibosidade e postura curvada.
Curiosamente, um autor muito crítico do padre Cícero descreve-o em 1926 como “anquilosado e sofrendo frequentes cólicas intestinais que o obrigam a rigoroso regime alimentar”. Um episódio de artrite (sem outros detalhes), quando com 60 anos, teria sido diagnosticado como os “primeiros sintomas de uma crise de gota”, pelo Dr. Antonio Mariz, um de seus médicos. Os relatos de cólicas intestinais fortes, que teriam ocorrido durante vários anos e o levado, algumas vezes, à prostração, existem em vários livros a seu respeito. Há vários relatos de que o padre Cícero dormia muito pouco, era surpreendido a cochilar durante o dia, diante dos interlocutores, e até mesmo na sela de sua montaria. Sempre dormiu em rede, a despeito de ter uma cama em seu quarto. Tinha alimentação frugal, habitualmente jejuava por longos períodos. Em 1910, ao pensar ser acometido de problemas renais, observou conselhos do Dr. Miguel Couto e acreditou que a situação, decorria da água do Juazeiro. A partir de então, passou a beber apenas água de coco ou chá, não voltou a beber água potável.
Há descrições de hemoptises nas biografias do padre Cícero, embora nos pareça que se tratasse de hemoptoicos, já ele com 76 anos. Mesmo que não haja relato de sintomas respiratórios outros, considerando que o padre Cícero teria fumado, certamente cigarro não industrializado, por alguns anos, ainda antes de chegar ao Juazeiro, não se pode deixar de considerar a possibilidade de que ele tenha desenvolvido algum problema respiratório de vias aéreas inferiores que pudesse ter levado a episódios de hemoptoicos.


mostra inclinação lateral do pescoço.
Aparentemente, é muito claro que o padre Cícero tenha apresentado repetidas infecções nos membros inferiores, descritas como erisipela, nos seus últimos anos de vida. Um antraz, na região cervical posterior, já próximo de sua morte, foi motivo de uma intervenção cirúrgica, bem como uma provável catarata, operada pouco mais de um mês antes de sua morte, sem sucesso. Em uma de suas biografias, a descrição de seu último quadro sugere o desenvolvimento de obstrução intestinal.
Considerando que o padre Cícero já contava 90 anos, que teria apresentado furúnculos e mesmo erisipela de repetição, aliados à inexistência de antibioticoterapia e de cuidados adequados de desinfecção, é bem possível que seu quadro final tenha sido infecção generalizada, a partir de foco cutâneo, que levou a comprometimento intestinal, com abdome agudo clínico, como poderia ocorrer na fase inicial de um choque séptico, agravado por desidratação e consequente déficit de irrigação renal, com anúria, que, aliás, é relatada, e seguiu-se o óbito.
Integração clínica
Motivado pela leitura de sua biografia, penso ser plausível propor a hipótese que o padre Cícero teria sido portador de uma espondiloartropatia crônica inflamatória, até hoje insuspeitada. A descrição seria de quadro doloroso lombar, que acometeu também a coluna cervical, em indivíduo do sexo masculino, de cor branca, iniciado antes dos 50 anos, com anquilose parcial da coluna, particularmente visível no segmento cervical. Teria havido pelo menos um episódio de artrite documentada e vários episódios de distúrbios intestinais, que poderiam ser associados a um componente inflamatório intestinal e fazer parte da hipótese diagnóstica principal.
Na história familiar, há apenas relato de que sua mãe teve “inflamação nas pálpebras” por vários anos e teria ficado “paralítica” em 1897, por volta de sua sexta década de vida.
Diagnóstico diferencial
O diagnóstico anatômico predominante seria da coluna (segmentos lombar e cervical), com quadro crônico, de provável natureza inflamatória, uma vez que não há descrição de que seus sintomas fossem agravados por sua atividade física, que foi intensa. O “Padim” era incansável, trabalhava até altas horas. Sempre se deslocou regularmente, mesmo na última década de vida. A sonolência poderia denunciar sono não reparador e a preferência pela rede é comum em doentes com espondilite “aqui por essas bandas do Nordeste brasileiro”, embora não haja fundamentação técnica a apoiar esse hábito.
Assim, esses aspectos que sugerem sono não reparador alimentam a hipótese de que suas dores na coluna, relatadas em vários livros a seu respeito, tivessem caráter inflamatório. Não há relato de trauma que pudesse justificar uma fratura cuja consolidação daria causa à deformidade cervical que desenvolveu. Também é improvável ter-se tratado de escoliose, que não é causa habitual de dor na coluna, ao contrário do pensamento comum, e raramente envolve a porção cervical, que é o segmento com deformidade mais perceptível no padre. Uma foto sua (fig. 3) ainda prestes a concluir os estudos no seminário (cerca de 23 anos) não mostra a inclinação do pescoço, que deveria existir já a esse tempo caso a razão fosse escoliose idiopática juvenil estrutural. É improvável tratar-se de osteoartrite primária, face ao sexo masculino e ter iniciado abaixo de 50 anos.
A julgar pela foto de 1888 (fig. 1), em que o padre já aparece com o pescoço inclinado para a direita, e pelos relatos de dores e da “escoliose” por volta de seus 50 anos, é absolutamente plausível que ele tenha apresentado dores por algum tempo, que se teriam iniciado antes dos 45 anos, como ocorreria nas espondiloartrites.
Causas infecciosas piogênicas e artrite reativa são improváveis pela cronologia, bem como artrite microcristalina, mesmo a de causa hiperuricêmica. Padre Cícero era magro, tinha dieta frugal, com pouca ingesta de carnes vermelhas, abstinência alcoólica e havia predominância do envolvimento da coluna. Não seria apelativo, a despeito da especulação inerente ao presente texto, que a artrite relatada aos 60 anos decorreria de envolvimento articular periférico de uma espondiloartrite de predomínio axial. Lues, doença altamente prevalente na época, pode ser excluída pela condição celibatária do patriarca, que assumiu esse compromisso ainda adolescente (aos 12 anos, segundo depoimentos), o que não foi questionado nem por seus mais ácidos críticos. Ademais, sua marcha não tinha aspecto de tabética, como seria passível de existir em uma lues terciária que envolvesse a medula espinhal. Etiologia tuberculosa, hansênica ou fúngica, a despeito dos hemoptoicos, nos parecem causas improváveis para explicar o quadro da coluna, face ao longo tempo (mais de 40 anos de evolução) e ao aspecto anquilosado que sua rigidez ao caminhar sugere. Não temos elementos para explicar os episódios de hemoptoicos, mas poderiam decorrer de sequelas de infecções respiratórias. Osteoporose primária que leva a fraturas pode ser afastada pelo sexo masculino, boa atividade física, ingesta frequente de laticínios, exposição intensa e por muitos anos ao sol, início antes dos 45 anos, além da artrite e quadro intestinal incompatíveis com osteoporose.
Há dados epidemiológicos que ainda podem ser considerados. O padre Cícero era louro, com olhos azuis, de descendência direta portuguesa e teria mãe índia. Como a doença é mais prevalente em brancos e o padre tinha ascendência branca mediterrânea, é possível que tenha daí partido um componente genético. Sua mãe, com grande chance, seria miscigenada, tinha ascendência possivelmente portuguesa. Há ainda, embora represente especulação pura, os problemas oftálmicos de sua mãe. Ainda que relatada como “inflamação nas pálpebras”, a descrição é de vermelhidão nos olhos, aparentemente recorrente, que, de forma especulativa, podemos propor ter se tratado de episódios de uveíte.
Conclusão
Não é incomum, bem ao contrário, que o diagnóstico de espondiloartrites passe despercebido em nossos dias. Assim, não causa estranheza que jamais, ao nosso conhecimento, se tenha cogitado essa possibilidade no caso do padre Cícero. A personalidade do padre Cícero, ao que nos parece, poderia ter contribuído para que ele, mesmo que tenha sido portador de doença inflamatória da coluna, tivesse vida absolutamente produtiva, com atividade diária extenuante e contínua. Motivação não parece ter sido um problema para esse homem de tanta determinação, mesmo sem ter podido usar anti-inflamatórios para alívio dos sintomas. Por último, e não menos importante, destaque-se talvez o principal motivo desta descrição e especulação sobre a doença que o padre Cícero teria apresentado.
Através da leitura de sua biografia, nos chamou atenção a existência de várias fotografias nas quais o Patriarca do Juazeiro apresenta desvio lateral cervical. Seria improvável que em fotos de vários períodos de sua vida, sem motivo aparente, ele tivesse conseguido manter praticamente imutável essa postura.
Apesar de não apresentar postura clássica do “esquiador”, o padre Cícero parece ter o pescoço mais anteriorizado em relação à região dorsal (fig. 3), além de aparente projeção anterior do abdome. Tampouco passou-nos despercebida a descrição de episódios de dores lombares e distúrbios intestinais, que também podem ocorrer nas espondiloartrites. Quando avaliamos um vídeo do padre Cícero., feito na década de 1920, percebemos que o padre, quando anda no meio da multidão e parece ter sua atenção chamada por circunstantes, faz o movimento do corpo em que se volta completamente para se dirigir ao interlocutor, praticamente sem movimento lateral do pescoço, move-se “em bloco”, como se sua coluna não tivesse mobilidade no segmento cervical.
Como me disse uma amiga, como um “boneco de Olinda”. Esse movimento ocorre nitidamente três vezes, para ambos os lados, sugere fortemente que o padre Cícero, independentemente da idade avançada que apresentava, tivesse séria limitação ao movimento de flexão lateral do pescoço.
A necessidade de atenção a detalhes é sempre enfatizada na coleta da história clínica reumatológica. A maioria dos diagnósticos nessa especialidade depende de bom ouvido do médico e observação atenta ao paciente, no intuito de bem caracterizar no tempo, espaço e intensidade, dentre outros aspectos, a descrição dos sintomas. Reiteramos que os exames subsidiários não sobrepujam a história clínica na definição do diagnóstico e, não menos importante, a condução terapêutica das espondiloartrites.
A leitura de uma biografia alerta um reumatologista para um diagnóstico plausível em tão ilustre personagem e demonstra a importância dos olhos e ouvidos atentos à anamnese. Nosso “Padim”, nosso porque sou cearense como ele, estaria operando novamente, mais vivo do que nunca, alertando para o melhor reconhecimento de pessoas acometidas dessas doenças.
Atualmente, o intervalo de tempo para se firmar o diagnóstico não raro supera 10 anos de sintomatologia. Sendo mais um milagre do padre Cícero ou não, parece-nos que ele, passados 91 anos de seu falecimento, através da descrição de sua história por terceiros, continua a contribuir para melhorar a vida e a saúde do povo e, desta feita, possivelmente no Brasil inteiro.
Fonte: rev bras reumatol . 2 0 1 6;56(5):464–467
Comentários